LISBOA
Empreza da Historia de Portugal.
Sociedade editora
LIVRARIA MODERNA
R. Augusta, 95
TYPOGRAPHIA
35, R. Ivens, 37
1903
Pág. 5
As relações de amizade entre os vivos e os mortos são menos quebradiçase ephémeras do que as dos vivos uns com outros.
E a razão é facil de explicar: quem vai, não volta.
Os mortos não falam, não intrigam, não atraiçôam, não desmerecem, porisso, da estima e consideração em que uma vez os tomamos.
Affeiçôa-se a gente a um escriptor, a um maestro, a um pintor ou a umestatuário, que morreu ha muitos annos ou ha longos seculos, e nãodeixamos apagar nunca a lampada do seu culto: colleccionamos-lhe asobras sem olhar a dinheiro, por mais raras que sejam; conservamol-as emgrande veneração como thesouros que um avarento aferrolha a sete chaves;e estamos sempre promptos a combater de ponto em branco pela gloria ebelleza Pág. 6 de suas producções, quando apparece algum zoilo amenosprezal-as com azedume.
E se nas relações com os vivos fazemos selecção do caracter d'elles paraestabelecer convivencia e amizade, pouco nos importa a condição eprocedimento dos mortos quando os estimamos em suas creações artisticasou literarias com intransigente fanatismo.
O meu fallecido amigo visconde de Alemquer, que era um gentlemandistinctissimo, primoroso em maneiras e acções, além de ser umbiblióphilo digno de apreço e consulta, tomou tanto gosto pelas obras dopadre José Agostinho de Macedo, que passou a maior parte da existencia acolleccional-as por bom preço e a muito custo.
Comtudo, havia tanta disparidade entre o caracter de um e do outro,porque o auctor dos Burros foi o mais atrabiliario, inconstante eperigoso homem de letras de todo o nosso Portugal, que o visconde deAlemquer, se houvesse sido contemporaneo do padre José Agostinho, nuncateria podido ser seu amigo, nem seu defensor, nem jámais o quereria vêrem intimidade de portas a dentro.
Pela minha parte, tambem sou obrigado a confessar um similhante fraco,não pelo mesmo padre, mas por outro que, sob o ponto de vista dadisciplina monastica e da dignidade sacerdotal, não valia mais.Refiro-me ao franciscano Antonio Ribeiro o Chiado, que tambem despiu ohabito e foi tunante irrequieto, sendo egualmente homem de letras.
Até 1889, anno em que logrei dar a lume as suas obras, quasi perdidas, egeralmente desconhecidas[1], Pág. 7 custou-me o Chiado bom trabalho ecanceiras para resuscital-o aos olhos do grande publico em toda a suaindividualidade literaria.
[1] Obras do poeta Chiado, colligidas, annotadas e prefaciadas porAlberto Pimentel. Na officina typographica da Empreza Literaria deLisboa, calçada de S. Francisco, 1 a 7.
D'então para cá não deixei de pensar n'elle a investigar-lhe abiographia, que é das mais obscuras e complicadas, e a proc