MACHADO DE ASSIS

DA ACADEMIA BRASILEIRA

QUINCAS BORBA

RIO DE JANEIRO
B. L. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
1891

OBRAS DO AUTOR

Memorias Posthumas de Braz Cubas
Quincas Borba
Histórias sem data
Papéis avulsos
Historias da meia noite
Yayá Garcia, romance
Helena, romance
Resurreição, romance
A mão e a luva, romance
Contos Fluminenses
Americanas, poesias
Phalenas, poesias
Chrysalidas, poesias
Tu só, tu, puro amor, comédia


QUINCAS BORBA


CAPITULO PRIMEIRO

Rubião fitava a enseada,—eram oito horas da manhã.Quem o visse, com os polegares mettidos nocordão do chambre, á janella de uma grande casade Botafogo, cuidaria que elle admirava aquellepedaço de agua quieta; mas, em verdade, vos digoque pensava em outra cousa. Cotejava o passado como presente. Que era, ha um anno? Professor. Queé agora? Capitalista. Olha para si, para as chinellas(umas chinellas de Tunis, que lhe deu recenteamigo, Christiano Palha), para a casa, para o jardim,para a enseada, para os morros e para o ceu; e tudo,desde as chinellas até o ceu, tudo entra na mesmasensação de propriedade.

—Vejam como Deus escreve direito por linhastortas, pensa elle. Se a mana Piedade tem casadocom o Quincas Borba, apenas me daria uma esperançacollateral. Não casou; ambos morreram, eaqui está tudo commigo; de modo que o que pareciauma desgraça...


CAPITULO II

Que abysmo que ha entre o espirito e o coração!O espirito do ex-professor, vexado daquellepensamento, arrepiou caminho, buscou outro assumpto,uma canoa que ia passando; o coração,porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lheimporta a canoa nem o canoeiro, que os olhos deRubião acompanham, arregalados? Elle, coração,vae dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinhade morrer, foi bom que não casasse; podia vir umfilho ou uma filha... —Bonita canoa!—Antesassim!--Como obedece bem aos remos do homem!—Ocerto é que elles estão no ceu!


CAPITULO III

Um creado trouxe o café. Rubião pegou na chicara,e, em quanto lhe deitava assucar, ia disfarçadamentemirando a bandeja, que era de prata lavrada.Prata, ouro, eram os metaes que amava de coração;não gostava de bronze, mas o amigo Palhadisse-lhe que era materia de preço, e assim se explicaeste par de figuras que aqui está na sala, umMephistopheles e um Fausto. Tivesse, porém, deescolher, escolheria a bandeja,—primor de argentaria,execução fina e acabada. O creado esperavatezo e serio. Era hespanhol; e não foi sem resistenciaque Rubião o acceitou das mãos de Christiano;por mais que lhe dissesse que estava acostumadoaos seus creoulos de Minas, e não queria linguasestrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhea necessidade de ter creados brancos.Rubião cedeu com pena. O seu bom pagem, que ellequeria pôr na sala, como um pedaço da provincia,nem o pôde deixar na cosinha, onde reinava umfrancez, Jean; foi degradado a outros serviços.

—Quincas Borba está muito impaciente? perguntouRubião bebendo o ultimo golo de café, elançando um ultimo olhar á bandeja.

Me parece que si.

—Lá vou soltal-o.

Não foi; deixou-se ficar, algum tempo, a olharpara os moveis. Vendo as pequenas gravuras inglezas,que pendiam da parede por cima dos dousbronzes, Rubião pensou na bella Sophia, mulherdo Palha,

...

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