4.o MILHAR
LISBOA
LIVRARIA CLÁSSICA EDITORA
DE A. M. TEIXEIRA & C.a (FILHOS)
Praça dos Restauradores, 17
1922
PORTO—Imprensa Portuguesa
Rua Formosa, 116
—Mas tu és minha amiga, balbuciava a creatura querendo tomar-lhe asmãos n'uma supplica desolada. Devias ter dó d'esta fatalidade que meleva ao encontro de Ruy. Oh, tu não sabes! A idéa d'elle tira-me osomno, embebeda-me, convulsiona-me, vai commigo a toda a parte. Tu aomenos tiveste familia, irmãos, alguem. A mim nunca ninguem me quiz. Osgarotos puxavam-me os cabellos, meu pai batia-me em estandoembriagado. Aos dez annos puzeram-me fóra, que fosse trabalhar. Eandei descalça atraz dos porcos, ia aos sabbados pedir esmolas ásportas dos ricos. Um verão agarram-me a furtar uvas n'uma vinha: ovinheiro era um bruto, jogou-me um tiro; e cheia de sangue, quasimorta, uns cavadores que passavam, foram (p. 006) levar-me a casa daminha madrasta. Mas á embocada da aldeia, como eu ia estendida n'umapadiola de ramos, a senhora marqueza viu-me passar da sua janella, epor caridade, recolheu-me. Alli se fôra creando, a fazer companhia aomenino. Ruy n'esse tempo era um despota, obrigava-a a saltar muros, apendurar-se de cordas, a fazer de cavallo. E batia-lhe. Em compensaçãoLuiza adorava-o com um amor de cadella agradecida. Do fundo da suahumildade, nascia-lhe um deslumbramento inexplicavel, uma curiosidade,uma cegueira de Ruy. E nervosa, franzininha, como a figura d'umaborboleta na melancholia pallida d'um sonho, adquirira jáprecocidades: e os seus grandes olhos remordiam na belleza dopequenito, substractos de muitissimas aspirações. Na quinta, ostrabalhadores ás vezes perguntavam-lhe:
—Queres ser amiga além do menino?
Ella abria os seus olhos vorazes, dizendo com a cabeça que sim.Entrementes o pequeno ia crescendo. Era alto, delgado, divinamenteperfeito. Tinha já essa attitude desinteressada d'enthusiasmos,indifferente aos impulsos fortes, desdenhosa, petulante, das creaturasnascidas em meios altos, e destinadas ao predominio. (p. 007) As suasmãos davam cobiça, brancas de cera, e com detalhes mimosos d'obraprima. Oh, mas a bocca, inexplicavel, trazia embrionada na esculpturados labios, todas as florações mysteriosas d'uma ascendenciapatricia—bocca de chefe pela austeridade, de diplomata pela ironia, ede mulher pela doçura com que a descerrava, em sorrisos cicatrizadoresdas esgarçaduras que a sua altivez antes fizera. Quando elle veio docollegio a primeira vez, empallidecera: mas a expressão dos seus olhosera uma coisa indescriptivel d'encanto, de melancholia e suavidade.
Á enformatura tenra, oscillando como a haste anemica d'uma flôr deestufa, viera juntar-se o mysterio poetico d'um espirito insexualmentedelicado, cujas infantilidades corrigia a cada instante um fogo-fatuod'idéa, e a graça grave, indecifravel cambiante, da esphinge quecontempla, sem desmentir jámais a prega austera da bocca. Era já,n'essa idade, a creatura de gostos raros, avara de palavras e gestos,fria, correcta, com preguiças d'ataxica e relampagos de crueldade napupila augusta de Cesar, adorando o luxo dos palacios antigos, tendo amania do bibelotage, e antegostando, como todos os homens da sua(p. 008) familia, uma especie de deleite perverso no desnortear pelotestemunho das suas impressões prevaricadas, a sensibilidade reputadanormal pela outra gente. Essa susceptibilidade depressa se embotavatoda